*Atualizado em 8 de março de 2024
Quando vi que a Companhia das Letras iria lançar o famoso álbum Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s, em formato de livro, logo já fiquei curiosa para ler. O disco de 1997 foi selecionado para o vestibular da UNICAMP por sua poesia contemporânea e por tratar de acontecimentos importantes da virada dos anos 1990 no Brasil.
O disco bateu a marca de 1,5 milhão de cópias vendidas e ganhou grande repercussão nacional. As músicas dos Racionais trazem consigo uma mensagem incrível de uma sociedade que se tornou desumana, e uma tentativa radical de sobreviver a ela. O impacto da obra – que após os massacres do Carandiru e da chacina de Candelária – é sem igual, trazendo uma nova perspectiva para o morador da periferia, que finalmente encontrava uma voz e uma identificação.
Frases de Sérgio Vaz e Criolo sintetizam bem o álbum do Racionais:
“Foi com Sobrevivendo no inferno que a juventude negra e periférica se formou. Por causa deste disco muita gente se graduou em autoestima e não entrou para a faculdade do crime.”
Sérgio Vaz
“O relato não frio, histórico e real da mentalidade que massacra e exclui no Brasil.”
Criolo
O projeto editorial ficou incrível: o livro é repleto de fotografias em branco e preto e sua lombada é dourada brilhante, similar a uma Bíblia:
Confesso que não conheço quase nada de Racionais, mas esse livro é bem impactante. Logo no início a obra apresenta o texto de apoio escrito por Acauam Silvério de Oliveira, que explica o contexto do álbum e dos artistas Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock:
“A atuação do grupo foi decisiva para fazer do rap muito mais que uma simples representação da periferia. Sua radicalidade e seu senso de “missão” (afinal, “rap é compromisso”, já dizia Sabotage) ajudaram a desenvolver um espaço discursivo em que os cidadãos periféricos puderam se apropriar de sua própria imagem, construindo para si uma voz que, no limite, mudaria a forma de enxergar e vivenciar a pobreza no Brasil.” (p.23)
Durante a leitura das músicas/poemas, não parava de pensar em quanto vivemos numa bolha e não fazemos a menor ideia do que é a violência, a pobreza e a crueldade. As letras são intensas e fazem severas críticas à polícia, ao Estado e à marginalização, além das situações deploráveis do sistema carcerário. Em diversos momentos a vontade de chorar é grande, confesso – mais de raiva do que qualquer outra coisa.
Para comprar o livro, é só clicar no link abaixo:
Uma das músicas que mais gostei foi “Rapaz Comum“, com trechos que parecem nos dar um soco na cara:
Mais uma vida desperdiçada e é só.
Uma bala vale por uma vida do meu povo.
No pente tem quinze, sempre há menos no morro, e então?
Quantos manos iguais a mim se foram?
Preto, preto, pobre, cuidado, socorro!
[…]
Não quero admitir que sou mais um.
Infelizmente é assim, aqui é comum.
Um corpo a mais no necrotério, é sério.
Um preto a mais no cemitério, é sério.
Outra música que ficou bastante famosa é “Diário de um Detento“, que também tem uma letra arrasadora:
Aqui estou, mais um dia.
Sob o olhar sanguinário do vigia.
[…]
Cada detento uma mãe, uma crença.
Cada crime uma sentença.
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima,
sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio,
sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo.
Misture bem essa química.
Pronto: eis um novo detento
[…]
Ladrão sangue bom tem moral na quebrada.
Mas pro Estado é só um número, mais nada.
Nove pavilhões, sete mil homens.
Que custam trezentos reais por mês, cada.
Se você preferir, pode ouvir o álbum inteiro aqui.
Ler o livro já foi uma experiência incrível, ouvir o álbum é ainda melhor! Sobrevivendo no Inferno é uma pérola nacional e deve ser ouvida/lida por todos. Recomendadíssimo! 🙂Nota:
Isabela Zamboni Moschin é jornalista, especialista em Língua Portuguesa e Literatura e mestre em Mídia e Tecnologia. Adora café, livros, séries e filmes. Atualmente, trabalha como Analista de Conteúdo na Toro Investimentos