*Atualizado em 8 de março de 2024
O livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão me chamou a atenção por ser adaptado para o cinema e ter ganhado a mostra Um Certo Olhar, em Cannes. Eu já tinha ouvido falar na escritora Martha Batalha, mas fiquei curiosa para conhecer sua obra. Não fazia ideia do que iria encontrar e foi uma boa surpresa poder entrar na história das irmãs Gusmão.
Veja a sinopse oficial:
Rio de Janeiro, anos 1940. Guida Gusmão desaparece da casa dos pais sem deixar notícias, enquanto sua irmã Eurídice se torna uma dona de casa exemplar. Mas nenhuma das duas parece feliz em suas escolhas. A trajetória das irmãs Gusmão em muito se assemelha com a de inúmeras mulheres nascidas no Rio de Janeiro no começo do século XX e criadas apenas para serem boas esposas. São as nossas mães, avós e bisavós, invisíveis em maior ou menor grau, que não puderam protagonizar a própria vida, mas que agora são as personagens principais do primeiro romance de Martha Batalha.
Enquanto acompanhamos as desventuras de Guida e Eurídice, somos apresentados a uma gama de figuras fascinantes: Zélia, a vizinha fofoqueira, e seu pai Álvaro, às voltas com o mau-olhado de um poderoso feiticeiro; Filomena, ex-prostituta que cuida de crianças; Luiz, um dos primeiros milionários da República; e o solteirão Antônio, dono da papelaria da esquina e apaixonado por Eurídice.
Essas múltiplas narrativas envolvem o leitor desde a primeira página, com ritmo e estrutura sólidos. Capaz de falar de temas como violência, marginalização e injustiça com humor, perspicácia e ironia, Martha Batalha é acima de tudo uma excelente contadora de histórias. Uma promessa da nova literatura brasileira que tem como principal compromisso o prazer da leitura.
Esse livro me gerou uma mistura de sentimentos. No começo, estava gostando bastante, quase terminei a leitura no mesmo dia. Mas, no decorrer das páginas, algumas situações começaram a ficar corridas, meio desconexas e até fugindo um pouco do que eu esperava. Ao mesmo tempo em que é uma excelente narrativa, com personagens muito interessantes, o final me decepcionou um pouco.
Sabe quando parece que você não está lendo a mesma história do começo ao fim? De repente as situações mudam e perdem a emoção.
A Vida Invisível de Eurídice Gusmão aborda as limitações das mulheres na sociedade carioca, das gerações que viveram no século XX, especialmente na década de 40 no Rio de Janeiro. Mulheres abandonadas, humilhadas, cobradas, quase que escravas de uma sociedade que só as demonizavam e as forçavam a serem perfeitas donas de casa. Bela, recatada e do lar.
Eurídice é uma mulher esforçada, talentosa, inteligentíssima, mas barrada pelo pai desde cedo em seus sonhos. Deixou a música de lado para tornar-se uma perfeita esposa. Por fim, casou-se com Antenor, um homem acomodado e cheio de manias, mas com uma carreira promissora dentro do Banco do Brasil.
Conforme passam os dias – muito, mas muito lentamente – seus filhos crescem, o marido vira uma rotina desagradável e a própria Eurídice sente-se cada vez mais vazia, com seus sonhos jogados na lixeira.
“Eurídice não usou suas mãos para proclamar a independência, mas para cobrir o rosto cabisbaixo. Ela sabia que o marido tinha razão, dentro de tudo aquilo que parecia razoável, e de acordo com a pessoa razoável que prometeu ser após a fuga de Guida.”
Guida Gusmão, sua irmã, fugiu de casa logo cedo. Casou-se, mas foi abandonada depois de algum tempo com uma criança no ventre. Tentou se reconciliar com os pais, mas foi despejada. Uma mulher que tentou a todo custo manter uma vida digna ao filho e libertar-se das amarras, mesmo sendo rejeitada e humilhada por todos os lados.
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Enquanto isso, Eurídice se anula e é constantemente anulada. Passa a vida correndo atrás de alguma atividade que a permitisse achar maior significado em sua própria vida: cozinhando, costurando, ou o que fosse possível. É frustrada em todas as tentativas. Por fim, encontra consolo nos livros, passando os dias em frente à máquina de escrever.
“Cecília veio ao mundo nove meses e dois dias depois das bodas. Era uma bebê risonha e gordinha, recebida com festa pela família, que repetia: É linda! Afonso veio ao mundo no ano seguinte. Era um bebê risonho e gordinho, recebido com festa pela família, que repetia: É homem!”
As duas irmãs precisam passar por julgamentos de todos os que as cercam. Porém, elas têm algo em comum além do sangue: são mulheres fortes, mas que não conhecem o tamanho de sua força.
“Eurídice era afetada por gostar de viver em seu mundo, e Guida era afetada por gostar de ser a mais bonita, neste mundo de todos nós.”
A estranheza que comentei anteriormente está mais relacionada ao final do livro. De repente, tudo acontece, o tempo passa rápido, Eurídice é deixada de escanteio para dar espaço a alguns eventos na vida de Guida… que parecem até uma comédia.
Eu achei que seria um livro mais sensível, mas a invisibilidade de Eurídice e a força de Guida, as adversidades e conflitos da história ficam mal resolvidos e com soluções que não me agradaram.
É uma ótima narrativa, principalmente por retratar com minúcia a década de 40 no Rio de Janeiro. O humor de Martha Batalha é ácido, as críticas à sociedade são fortes (os vizinhos fofoqueiros, o racismo velado, a burguesia e elite burra, o machismo incrustado, para não citar mais) e o viés feminista casa perfeitamente com o enredo.
No entanto, ainda acredito que faltou elaborar mais. A obra é curtinha, nem duzentas páginas, mas poderia ir além. Senti uma mistura de Elena Ferrante com Nelson Rodrigues (se é que isso faz sentido) e um enorme potencial. Mas, infelizmente, não me pegou 100%.
NOTA:
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Isabela Zamboni Moschin é jornalista, especialista em Língua Portuguesa e Literatura e mestre em Mídia e Tecnologia. Adora café, livros, séries e filmes. Atualmente, trabalha como Analista de Conteúdo na Toro Investimentos