Resenhas  |  23.01.2018

Resenha: O Som e a Fúria – William Faulkner

Vou começar essa resenha com uma frase bem simples, mas que resume O Som e a Fúria: que livro difícil! Acho que nem Macbeth ou Otelo foram tão complicados quanto esse clássico da literatura.

Escrita em 1929, é considerada a obra mais importante do escritor norte-americano William Faulkner, que ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1949.

Resenha: O Som e a Fúria - William Faulkner
Foto: Isabela Zamboni | Resenhas à la Carte

Mas não é porque é difícil, que é ruim – muito pelo contrário! Se você gosta de literatura clássica e principalmente leituras desafiadoras, O Som e a Fúria é um prato cheio. Segundo o prefácio dessa edição da Companhia das Letras, o romance foi criado durante um período de isolamento, depois que o autor teve seu terceiro romance recusado por diversas editoras.

Após ficar bastante abalado, William Faulkner investiu num estilo ousado, tecido por vozes narrativas distintas e saltos inesperados no tempo. Essa edição também conta com tradução de Paulo Henriques Britto e uma análise crítica de Jean-Paul Sartre publicada em 1939.

Quando comecei a ler as primeiras páginas, já fiquei baqueada. Sabia que o autor usava a técnica do fluxo de consciência – bastante utilizada por Virginia Woolf e uma clara referência ao Ulysses, de Joyce – mas nada desse nível. Porém, o choque inicial logo passa e, após algum tempo de leitura, é possível entender e apreciar o estilo de Faulkner.

Mas, afinal, do que se trata O Som e a Fúria? É a história da violenta decadência dos Compson, família aristocrática do sul dos Estados Unidos. Como a trama se desenrola no final da década de 20, vemos muitos ecos do preconceito racial e da xenofobia. Os EUA passavam por um forte momento de crise econômica, então é possível conferir na obra de Faulkner também muita pobreza e um país devastado.

Acompanhamos a história por quatro vozes narrativas diferentes: a primeira, pelo olhar de Benjamin, um dos filhos dos Compson, homem que “nasceu bobo”, com algum tipo de deficiência mental. São muitas passagens sem nexo, com o passado misturado ao presente, além de fortes sensações que pertencem a um cérebro atribulado e confuso. Por isso o grande baque da leitura, é desafiador acompanhar esse vaivém de pensamentos.

A segunda voz narrativa é do melancólico Quentin, mais um dos filhos da família Compson. Confesso que essa foi a parte mais complicada do livro, que deu vontade de abandonar. Porém, é justamente a parcela mais densa, sendo necessário reler várias vezes.

Quentin, enquanto jovem adulto, foi estudar em Harvard, após seus pais terem vendido parte de sua propriedade para ajudar a pagar pelos estudos do filho. No entanto, enquanto acompanhamos um dia na vida de Quentin, também somos apresentados com frequência ao uso do fluxo de consciência: enquanto ele caminha pela cidade, lembra-se de momentos do passado, ao mesmo tempo em que sua mente vagueia por descrições e recordações de sua infância, especialmente de sua irmã Caddie, por quem nutria um amor fervoroso e praticamente incestuoso. Em vários momentos Faulkner não usa pontuação e opta por utilizar recursos estilísticos refinados, que exige perseverança por parte de quem lê.

A terceira parte de O Som e a Fúria é uma das mais revoltantes: o ponto de vista de Jason, o filho mais novo que ficou para trás, morando com a mãe, D. Caroline, e os criados negros, Dilsey, T.P., Luster e Frony. Inclusive, Jason é considerado um dos maiores vilões da literatura norte-americana até hoje.

Ele chantageia a própria irmã e rouba o dinheiro que esta encaminha para a filha; é racista, misógino e preconceituoso; um homem agressivo, revoltado e que acredita ter sido injustiçado pela família. Aqui, a narrativa torna-se bem mais fácil, simples e tranquila de engatar. No entanto, prepare-se para passar raiva, ódio e detestar cada palavra dita por esse personagem.

Por fim, eu esperava que a última voz narrativa fosse a de Caddie, a filha dos Compson, mas não é bem como acontece. A narração é em terceira pessoa e a personagem central é Dilsey, a criada que é praticamente a matriarca da casa e sempre trabalhou naquele lar tomado pelas tragédias. Inclusive, é nesse momento que o tradutor Paulo Henriques Britto faz observações importantes a respeito das falas dos negros e dos brancos em relação à tradução para o português (vale muito a pena conferir).

As duas personagens mais intrigantes são Caddie e sua filha Quentin (nome que ganhou em homenagem ao tio, irmão de Caddie, para deixar a leitura ainda mais confusa). Em nenhum momento acompanhamos o ponto de vista das duas, só as conhecemos a partir do que os outros personagens dizem ou lembram a respeito delas. E achei muito bom o final de ambas, que é mostrado no apêndice dessa edição da Companhia das Letras. Sinto que somente essas duas eram mulheres à frente de seu tempo e que também passaram por muitas provações naquela família.

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Como já mencionei, o livro contém uma análise de Sartre ao final, que faz uma reflexão impressionante sobre a questão da temporalidade na obra de Faulkner. O mais interessante é como o filósofo traz à tona que a literatura de Faulkner deixa as personagens presas ao presente e ao passado, como se o futuro não existisse.

Durante toda a leitura, é como se lêssemos sempre algo que já se passou, mesmo que se passe no presente. Os tempos se mesclam, fundem-se e quebram-se na narrativa de O Som e a Fúria. A passagem em que Quentin fala sobre o relógio de seu avô é uma delas:

“Era o relógio de meu avô, e quando o ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda esperança e todo desejo; é extremamente provável que você o uso para lograr o reducto absurdum de toda experiência humana, que será tão pouco adaptado às suas necessidades individuais quanto foi às dele e às do pai dele. Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios.” (p.79)

A frase abaixo também sintetiza bastante toda a narrativa do livro, como podemos perceber em diversas passagens:

“O pai disse que o homem é o somatório de suas desgraças. A gente fica achando que um dia as desgraças se cansam, mas aí o tempo é que é a sua desgraça disse o pai. Uma gaivota presa num fio invisível o espaço cruzou. Você leva o símbolo da sua frustração para a eternidade. Então as asas são maiores disse o pai só quem sabe tocar harpa.” (p.108)

Outra observação interessante é que, ao mesmo tempo em que a escrita de Faulkner é riquíssima em detalhes, parece não condizer com o restante da história, que oferece tantas substâncias melodramáticas e folhetinescas. O livro é dividido em partes tão diferentes uma das outras, que parecem outros autores dentro de uma mesma obra.

Encerro essa resenha com uma citação de Macbeth, do Shakespeare, relacionada com O Som e a Fúria, que me fez ficar refletindo sobre esse livro incrível que acabei de ler:

O homem passa a vida lutando contra o tempo e o tempo o corrói como um ácido, arranca-o de si mesmo e o impede de realizar o humano. Tudo é absurdo: “A vida […] é uma história cheia de som e fúria, contada por um idiota e que não significa nada”.

Nota:

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*Última atualização em 11 de março de 2024

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1 Comentário “Resenha: O Som e a Fúria – William Faulkner”
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  1. JOAO PAULO DE SOUZA      16 jan 2024 // 11H31

    Gostaria de imprimir a resenha. Gosto de ler por meio físico.