Resenhas  |  18.02.2023

Resenha: Tudo é Rio – Carla Madeira

*Atualizado em 4 de março de 2024

Tudo é Rio, de Carla Madeira, foi o segundo livro mais vendido de 2021 e muito comentado entre leitores pelo Brasil afora. O livro de estreia da escritora mineira, cuja primeira edição é de 2014 e foi relançado em 2021 pela editora Record, foi uma grata surpresa, me deixando bastante animada durante a leitura.

Mas, antes de entrar em detalhes sobre a obra, vamos à sinopse oficial:

“Com uma narrativa madura, precisa e ao mesmo tempo delicada e poética, o romance narra a história do casal Dalva e Venâncio, que tem a vida transformada após uma perda trágica, resultado do ciúme doentio do marido, e de Lucy, a prostituta mais depravada e cobiçada da cidade, que entra no caminho deles, formando um triângulo amoroso.

A metáfora do rio se revela por meio da narrativa que flui – ora intensa, ora mais branda – de forma ininterrupta, mas também por meio do suor, da saliva, do sangue, das lágrimas, do sêmen, e Carla faz isso sem ser apelativa, sem sentimentalismo barato, com a habilidade que só os melhores escritores possuem.”

Resenha: Tudo é Rio - Carla Madeira
Foto: Isabela Zamboni/Resenhas à la Carte

É muito difícil falar sobre esse livro, porque ele é uma mistura de sensações. Como bem ressalta a sinopse, a narrativa é precisa, delicada e poética. Eu não conseguia parar de ler. Precisava entender o que ia acontecer com o casal Dalva e Venâncio e como a prostituta Lucy iria se juntar a esses jovens tão apaixonados.

Os personagens são muito bem descritos, a autora lota a narrativa de objetivos, metáforas, analogias, e tudo o que for possível para trazer mais proximidade com o leitor. É a cara do Brasil. Senti bastante influência de Nelson Rodrigues e também da literatura fantástica característica de autores da América do Sul. Ou seja, assim como a vida dos personagens é arrastada pela correnteza de um rio, sempre fluindo, nós leitores somos carregados junto com eles.

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Lucy é uma mulher que sente o desejo à flor da pele desde muito jovem. Gosta de ser prostituta, é uma “puta” de primeira. É sempre muito cobiçada e sente prazer em ser bajulada e apreciada. Uma mulher que deseja a independência, sempre atrelada ao seu lado sexual. É quase como uma serpente feroz, querendo se agarrar às presas, no caso os homens que frequentam o puteiro local, chamado Casa da Manu.

Venâncio, um homem desconsolado e infeliz, se recusa a deitar com Lucy, prefere qualquer outra prostituta a ela. Essa rejeição deixa a puta cada vez mais irritada e com vontade de conquistá-lo, urge a necessidade de se deitar com ele. Mas ele a rejeita. Só vamos descobrir o porquê mais adiante (e não vou contar para não estragar a história).

A questão é que Venâncio é casado com Dalva, mas o relacionamento dos dois é abalado por um acontecimento horrendo, resultado de um ciúme doentio, que destrói qualquer resquício de amor que existia ali. Dalva não perdoa Venâncio por suas atitudes, mas decide permanecer casada com ele, fazendo-o remoer todos os dias a sensação de remorso e culpa. Seria a punição dele – ter que viver cada dia lembrando do que fez.

“Aprendeu que a verdade não tem dono, que é duro demais existir e que ninguém precisa ajudar ninguém a sofrer. O sofrimento vem sozinho, tem pernas, mais cedo ou mais tarde ele aparece; o que a gente tem de buscar é a alegria, essa se esconde delicada na correria dos dias, não se oferece de pronto, quer ser encontrada, surpreendida, amada.” (p.105)

O livro é dividido em capítulos curtos, como uma minissérie episódica, em que aos poucos, de forma não-linear, sabemos mais do passado e da vida de cada um deles. São pessoas complexas, difíceis de entender, com sentimentos difusos que transbordam. Não é uma narrativa fácil de acompanhar, muitas pessoas não gostaram de alguns trechos, especialmente do final do livro.

A questão é que, por mais poética que seja, a linguagem também é nua e crua. Além de Lucy e Dalva, também conhecemos mais a fundo as histórias de outras mulheres que passam por situações escabrosas em seus relacionamentos. Dona Aurora, mãe de Dalva, dona Francisca, uma mulher de coração enorme, Duca, a tia de Lucy etc.

“Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de cheirar, gostar de ouvir, gostar de olhar. Gostar de se abandonar no outro. O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo.” (p.19)

Tudo é Rio incomoda, pode gerar gatilhos em algumas pessoas, não é uma leitura leve e fácil. Chorei em alguns momentos, há também passagens doloridas, muita tristeza envolvida. A grande questão que a autora apresenta é: seria possível perdoar o imperdoável? Até que ponto conseguimos superar algumas situações e seguir adiante? Como aceitar a consequência das nossas ações e sentimentos?

Eu sei que o final do livro incomoda, é difícil de engolir. Mas literatura é isso: não é para sempre trazer final feliz ou personagens 100% boas. Tem muita realidade nas páginas de Tudo é Rio e isso dói. Independentemente da época (não há nenhum indício temporal na narrativa), o absurdo e a complexidade das relações e sentimentos fazem parte das nossas vidas.

Não acredito que a autora quis ser conivente com qualquer tipo de relacionamento abusivo. Apenas quis mostrar que isso existe, e precisamos lutar contra, todos os dias.

“Algumas vezes as mudanças acontecem na marra. Uma guilhotina afiada corta as nossas mãos, e todas as rédeas escapam. É o que pensamos ter acontecido, até que a gente se dá conta de que nunca houve rédeas. Ninguém monta na vida. Brincamos de escolher, brincamos de poder conduzir o destino. Precisamos dessa ilusão para viver os dias de antes, dias em que podemos tudo só porque pensamos poder, e então a vontade do que está fora da gente joga sua sombra densa e pegajosa.” (p.163)

Eu gostei bastante de Tudo é Rio, achei uma obra corajosa e impactante. É um livro para se pensar e digerir aos poucos. Se um dia reler, posso achar outras nuances e pensar por outro ponto de vista. Mas por enquanto, recomendo para quem busca uma história densa e cheia de reflexões.

NOTA:

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