*Atualizado em 8 de março de 2024
Quando comecei a ler Desonra, de J.M. Coetzee, não fazia ideia do que se tratava. Já tinha visto indicações em várias listas, pessoas elogiando, resenhas positivas, mas não procurei saber exatamente como era o enredo. Posso dizer que foi um baque, porque logo nas primeiras páginas já me interessei pela história e a leitura fluiu rapidamente.
Veja a sinopse:
“O livro conta a história de David Lurie, um homem que cai em desgraça. Lurie é um professor de literatura que não sabe como conciliar sua formação humanista, seu desejo amoroso e as normas politicamente corretas da universidade onde dá aula. Mesmo sabendo do perigo, ele tem um caso com uma aluna. Acusado de abuso, é expulso da universidade e viaja para passar uns dias na propriedade rural da filha, Lucy. No campo, esse homem atormentado toma contato com a brutalidade e o ressentimento da África do Sul pós-apartheid.”
O mais engraçado é que a própria sinopse mostra como o livro tem várias facetas: a história começa de um jeito e se transforma, quase como se fosse algo vivo. A narrativa é de uma prosa econômica, bem seca, mas que tem um magnetismo impressionante. Muitas ironias, discussões a respeito de relações entre classes, sexos, história da África do Sul, academicismo, hipocrisia e uma situação social explosiva.
O protagonista David Lurie é um professor que não sente prazer em dar aulas, mas, antes de mais nada, é um pesquisador erudito, um esteta dedicado à fruição dos grandes livros e da música clássica.
Rodeado de alunos desinteressados, entrega-se à inércia do emprego na Universidade da Cidade do Cabo. Porém, Lurie é o típico homem de meia-idade que busca prazer no sexo e se preocupa com aparências em primeiro lugar. Sua vida se transforma quando ele se envolve com uma aluna, que o faz perder tudo, levando-o a refugiar-se com a única filha em uma fazenda no interior.
Acho complexo falar desse livro sem dar spoilers, mas vou tentar o possível. Lucy é uma mulher independente, que cuida da própria fazenda, tem uma namorada (que está viajando no momento em que David aparece para visitá-la), e vive no interior desde a década de 70, quando fazia parte de comunidades hippies.
O relacionamento de pai e filha altera-se bruscamente depois de um fato triste e perturbador – que não vou comentar – tornando-se o mote para o desenrolar da trama.
“É assim seu temperamento. Seu temperamento não vai mudar, está velho demais para isso. Está fixo, estabelecido. O crânio, depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo.” (p.8)
Em determinados momentos, senti muita raiva do protagonista, mas o mais interessante é justamente isso: Desonra é um romance de formação ao contrário.
David precisa se desconstruir o tempo todo, entender novas formas de vida diferentes da sua, conhecer pessoas novas e até aceitar ideias que ele refutava. O ódio foi amenizando e dava para entender alguns pensamentos e sentimentos do personagem. Eu simpatizei bem mais com Lucy e Bev, uma amiga de Lucy que mora na região (obviamente porque são mulheres que detestam o fato de ele ter assediado uma aluna).
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O livro de J.M. Coetzee, como a própria contracapa do livro aponta, “converte o romance da decadência de David Lurie numa perturbadora alegoria das desigualdades que continuaram a dilacerar a África do Sul após o colapso do regime racista.” Também traz várias discussões sobre as dificuldades que rondam o país, além de elucidar a passagem do tempo: a decadência de Lurie vem acompanhada da velhice, que não deixa de de rondá-lo.
“Ele continua ensinando porque é assim que ganha a vida; e também porque aprende a ser humilde, faz com que perceba o seu papel no mundo. A ironia não lhe escapa: aquele que vai ensinar acaba aprendendo a melhor lição, enquanto os que vão aprender não aprendem nada”. (p.10)
David traça o caminho da própria perdição com cínica lucidez quando se vê obrigado a defender a honra de sua única filha: e é esse choque que faz o personagem se transformar (na medida do possível) e entender que a vida – e seu país – vão muito além do universo “classe-média-acadêmico”.
“Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês de nada lhe valem na África negra. Está desamparado, um alvo fácil, um personagem de cartoon, um missionário de batina e capacete esperando de mãos juntas e olhos virados para o céu enquanto os selvagens combinam lá na língua deles como jogá-lo dentro do caldeirão de água fervendo. O trabalho missionário: que herança deixou esse imenso empreendimento enaltecedor? Nada visível.” (p.111)
Nos últimos capítulos de Desonra, o protagonista aceita sua nova condição: um homem cuja vida transformou-se radicalmente, tentando fazer o melhor possível com o tempo que lhe resta.
Uma nova reviravolta com a filha o faz retornar à fazenda, levando-o a viver seus últimos dias ao lado de Lucy. As atitudes da filha nunca fazem sentido em sua cabeça, como se ‘houvesse caído uma cortina entre as duas gerações’. No entanto, é no interior da África, cuidando de cachorros feridos ao lado de Bev, que o protagonista busca sua redenção.
J.M. Coetzee venceu o prêmio Nobel de Literatura em 2003, e seu romance mais famoso é Desonra. É também o autor de Verão, Infância e várias outras obras renomadas.
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Nota:
Isabela Zamboni Moschin é jornalista, especialista em Língua Portuguesa e Literatura e mestre em Mídia e Tecnologia. Adora café, livros, séries e filmes. Atualmente, trabalha como Analista de Conteúdo na Toro Investimentos