*Atualizado em 25 de outubro de 2020
Selecionei 9 poemas de Júbilo, memória, noviciado da paixão – livro mais vendido durante a FLIP 2018 – que demonstram muito bem a versatilidade e o amor de Hilda Hilst: “Lançado pela primeira vez em 1974, este livro introduz uma nova fase da escritora: é o primeiro volume de poesia depois de sua estreia na ficção. […] Com a forte marca da prosa, este volume de poemas apresenta os temas que consagraram a poeta: a entrega amorosa, a devoção mística, o anseio pelo encontro, o temor da morte. ‘Se te pareço noturna e imperfeita’, ela escreve, ‘Olha-me de novo.'”. Confira!
9 poemas de Júbilo, memória, noviciado da paixão, de Hilda Hilst
Morte, minha irmã:
Que se faça mais tarde a tua visita.
Agora nunca. Porque o amor de Túlio
O vermelho da vida, pela primeira vez se anuncia fecundo. Diante da luz do sol
O meu rosto noturno de poeta te suplica
Que te demores muito contemplando o mundo
Que te detenhas ali, entre a roseira
E o junco,
Ou talvez, para o teu conforto, assim, te estendas
À sombra das paineiras, sonolenta.
Morte, contempla. Poupa quem por amor,
Em tantos versos, também te fez rainha.
Esquece o poeta. Porque o amor de Túlio
O vermelho da vida, pela primeira vez
Secreto, se avizinha.
(p. 47)
É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.
(p. 59)
Aos amantes é lítico a voz desvanecida.
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido:
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora,
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo
Ronda escurecida?
Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor
Quando tudo anoitece? Antes lamenta
Essa teia de seda que a garganta tece.
Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo.
(p. 77)
Os dentes ao sol
A memória engolindo
O resplendor angélico
De um lívido jacinto.
Os dentes ao sol
E o escuro momento
Do girassol no muro
Enlouquecendo.
Os dentes ao sol
Dentro de mim
A sombra dos teus dedos
Tua brusca despedida.
Do tempo
As enormes mandíbulas
Roendo nossas vidas.
(p. 81)
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Aprendo encantamento.
E a sós
No bandolim do tempo
Vou sorvendo a hora
Hora de amor, amigo,
Quando o teu rosto
À minha frente
E a gostos
Se fizer consentido.
Aprendo a tua demora
Como a noite paciente
Conhece a madrugada
E obscura elabora
A salamandra rara:
O dia. Tua figura.
Aprendo encamentamento
E desfio encantada
O bandolim do tempo.
(p. 85)
Se eu te pedisse, Túlio,
O ato irreparável de me amar
Te pediria muito?
Se o corpo pede à alma
Que respirem juntos
Tu dirias, dúbio,
Que se trata de um pedido singular?
Se o que eu te digo
Ouves pelo ouvido
Tu culparias
Teu inteiro sentido
Auricular?
Retoma, Túlio,
O que pertence à vida: meu sangue, minha poesia
E o ato irreparável de me amar.
(p. 99)
Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E porisso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
Livre, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.
(p. 112)
Ávidos de ter, homens e mulheres
Caminham pelas ruas. As amigas sonambulas
Invadidas de um novo a mais querer
Se debruçam banais, sobre as vitrines curvas.
Uma pergunta brusca
Enquanto tu caminhas pelas ruas. Te pergunto:
E a entranha?
De ti mesma, de um poder que te foi dado
Alguma coisa clara se fez? Ou porque tudo se perdeu
É que procuras nas vitrines curvas, tu mesma,
Possuída de sonho, tu mesma infinita, maga,
Tua aventura de ser, tão esquecida?
Por que não tentas esse poço de dentro
O incomensurável, um passeio veemente pela vida?
Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada
De ter teu rosto verdadeiro, desejarias nada.
(p. 121)
Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo
Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falam.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
˜Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas˜.
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
É tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto,
Não cabe no meu canto.
(p. 224)
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Melissa Ladeia Schiewaldt é jornalista, especialista em Marketing Digital e tem MBA em Gestão de Projetos.