Resenhas  |  30.03.2019

Resenha: O Corvo – Edgar Allan Poe

*Atualizado em 8 de março de 2024

O Corvo é o poema mais famoso de Edgar Allan Poe e até mesmo da história da literatura. Publicado em 1845 sob um pseudônimo, os versos que tratam sobre perda e desejo, morte e esperança, angústia e solidão, são universalmente aclamados e elogiados até hoje.

Resenha: O Corvo - Edgar Allan Poe
Foto: Isabela Zamboni/Resenhas à la Carte

Nesta edição que eu li, publicada pela Companhia das Letras, são apresentadas duas traduções: a de Machado de Assis e Fernando Pessoa, grandes expoentes da língua portuguesa. No entanto, é notável a diferença entre os versos de cada tradutor: parecem até mesmo tratar de outro poema.

O grande diferencial dessa edição é a análise das traduções pelo poeta, tradutor e professor Paulo Henriques Britto, que também transpassa três textos fundamentais de Poe sobre poesia (“A filosofia da composição”, “A razão do verso” e “O princípio poético”), além de examinar a composição poética de Poe, tanto na análise temática quanto na técnica em si.

Resenha: O Corvo - Edgar Allan Poe
Foto: Isabela Zamboni/Resenhas à la Carte

Mas afinal, de que se trata o poema? São precisamente 108 versos que narram o desespero do eu-lírico que perde a sua amada, Lenora.

Em seu quarto triste, em um dia de chuva, um corvo entra subitamente na casa do narrador e pousa sobre uma estátua (o busto de Pallas Atenas, considerada a deusa da saberia grega). O corvo e o eu-lírico, então, passam a dialogar.

“Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

Tradução de Fernando Pessoa

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A análise técnica da obra – no momento em que o tradutor mede os versos, fala sobre sílabas átonas, pés trocaicos, ritmo iâmbico, entre outros termos mais complexos, não é fácil de compreender; no entanto, é necessário saber como foi dada a construção de O Corvo, já que sua sonoridade e ritmo foram friamente calculados por Poe.

“Não é preciso acreditar na argumentação de Poe – muito menos na idealidade de ‘O Corvo’ – para compreender por que esse ensaio fascinou, desde Mallarmé, tantos leitores argutos, entre eles Roman Jakobson. Sem dúvida, ‘A Filosofia da Composição’ prefigura as tendências críticas do século XX, como o new criticism e o estruturalismo, que privilegiam a análise fria dos componentes de um texto, prestando atenção em todos os seus aspectos semânticos, mas dando ênfase especial aos significantes: a sintaxe, o ritmo, a prosódia, os fonemas.” (p.33 – 34)

O ritmo é um dos elementos primordiais do poema. É ele que faz com que a obra de Poe seja tão reverenciada e original, pois mistura técnicas diferentes em um mesmo texto:

“Esse esquema formal, tão intrincado quanto rígido, não é gratuito. A repetição sistemática e prolongada de um ritmo muito marcado, sobretudo em se tratando de um metro pouco comum, tem um efeito hipnótico sobre o leitor-ouvinte.” (p.38)

O interessante das duas traduções para o português são as diferenças cruciais entre elas: mesmo quem não tem muito conhecimento em análises estruturais de versos (como eu) consegue notar o quanto Machado e Fernando Pessoa fizeram escolhas diversificadas. No entanto, o texto de Machado opta por deixar a estrutura formal de lado e ater-se mais ao conteúdo, não à forma.

“Esta é precisamente a crítica geral que podemos levantar ao formato escolhido por Machado: sua tradução ignora características formais que são importantes para o efeito do poema sobre o leitor.” (p.43)

Resenha: O Corvo - Edgar Allan Poe
Foto: Isabela Zamboni/Resenhas à la Carte

“Quem conhece a obra poética de Machado não tem dúvida de que seu domínio do artesanato do verso era mais do que suficiente para que ele compusesse todo um poema em ritmo trocaico, se a tal se propusesse. Afinal, uma das marcas da poesia parnasiana, corrente a que ele se filiou, era justamente a extrema regularidade métrica. Ao que parece, porém, Machado nem sequer tentou reproduzir a rigidez rítmica de ‘The Raven’; e não o fez por não perceber que a variação rítmica – algo que na maioria das vezes é uma virtude – neste poema em particular é um erro fatal.” (p. 47)

Fernando Pessoa faz um trabalho mais meticuloso e tenta ao máximo manter o estilo original de Poe, mesmo fazendo alterações em diversos termos (o que é indiscutível para uma tradução, muito se perde ou se altera no processo).

Resenha: O Corvo - Edgar Allan Poe
Foto: Isabela Zamboni/Resenhas à la Carte

Além das traduções, essa edição também contempla textos escritos pelo próprio autor, que dissecou sua obra e explicou como foi o processo de criação de O Corvo.

Ele revela todo o passo a passo da composição, de onde vieram as ideias, como criou a teia de acontecimentos e a estrutura formal da obra. É espetacular poder ler, pelas palavras do próprio criador, como foi a gênese de um poema tão bem construído. Veja algumas frases de Edgar Allan Poe:

“Já eu prefiro começar refletindo sobre um efeito. Mantendo sempre em vista a originalidade – pois quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse tão óbvia e fácil de obter trai a si próprio – digo a mim mesmo, em primeiro lugar: ‘Dos inúmeros efeitos, ou impressões, a que o coração, o intelecto ou (de modo mais geral) a alma é suscetível, qual devo escolher neste caso específico?’”. (p.58)

“[…] pois claro está que a brevidade deve ser diretamente proporcional à intensidade do efeito desejado – com esta condição: a de que um determinado grau de duração é absolutamente necessário para que algum efeito seja produzido.” (p.61)

“Eu já chegara ao ponto de conceber um Corvo – ave de mau agouro – a repetir monotonamente a palavra ‘nevermore’ ao final de cada estrofe de um poema de tom melancólico, com cerca de cem linhas de extensão. Ora, sem jamais perder de vista o objetivo – a supremacia ou perfeição sob todos os aspectos – , perguntei a mim mesmo: ‘De todos os temas melancólicos, qual, segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais melancólico?’. A morte, foi a resposta óbvia.” (p.65)

Mais do que ler um poema e refletir sobre ele, vale a pena conhecer o contexto da época, as visões de mundo do autor e também o processo de criação. E são esses elementos que fazem essa edição de O Corvo ser incrível: destrinchar não apenas o significado oculto, as metáforas e sentidos dos versos de Poe, mas conhecer todos os caminhos possíveis que o levaram a esculpir sua obra-prima.

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