*Atualizado em 11 de novembro de 2020
André Diniz teve a difícil tarefa de adaptar uma obra complexa, escrita há 150 anos: O Idiota, de Fiódor Dostoiévski. Conversamos com o ilustrador e roteirista sobre a obra, depressão, engajamento, entre outros assuntos. Confira:
Resenhas: Em um mundo onde assumir medos e problemas são sinais de fraqueza, fiquei bastante interessada ao ler um entrevista sua ao jornal O Globo onde afirma que interrompeu a produção “por conta de uma depressão e estafa crônicos”. Como você lida, hoje em dia, com a interferência desses problemas? Pergunto, pois, em tempos de “felicidade de Instagram”, um artista assumir a vulnerabilidade é um tanto subversivo…
André: Hoje está mais tranquilo, a partir do momento em que o problema foi identificado. Comecei em 2013 a sentir uma estafa física e mental crônicos, mas fui levando até parar por completo em 2014. Fiz uma série de exames e consultas em diferentes especialistas, sempre buscando uma causa física à minha fadiga, isso me tomou um ano. Até o momento em que a minha mulher questionou se não seria depressão. Até aquele momento, me faltava informação sobre o tema. Não no sentido de compreender quem sofre a doença, mas de saber identificá-la.
Eu associava depressão à tristeza profunda, a não querer viver, e são de fato sintomas ou causas (ou os dois ao mesmo tempo) bem comuns. Mas a minha era uma depressão sem tristeza, mais pelo esgotamento e apatia. Se eu ganhasse na loteria ou perdesse dinheiro, OK. Veio, curiosamente, numa ótima fase profissional e pessoal da minha vida. Por essas questões, não me ocorreu procurar um psiquiatra até o toque da minha mulher.
A partir do momento em que me recuperei um pouco, ao ponto ao menos de conseguir voltar a escrever, comecei a falar publicamente sobre isso. Primeiro, pela informação que me seria tão preciosa no começo de tudo, mas que me faltou. Fiquei assustado com a quantidade de pessoas, leitores, colegas, amigos, que confessavam a mim estar passando pelo mesmo processo, sem sequer imaginar que isso poderia, talvez, ser uma depressão.
Outra razão pela qual passei a falar disso e até trazer ao meu trabalho é que eu passei a conhecer uma nova visão da vida e fatalmente isso vai se refletir no meu trabalho. A minha forma de ver o mundo e as pessoas era um. Veio a depressão e passou a ser outra, bem mais negativa. Vieram os remédios e o mundo mudou, agora tudo era lindo. Depois de um ano de tratamento, volto a ver tudo de forma mais equilibrada, mas diferente. Isso foi uma aula que eu tive de como as convicções, ódios, medos, problemas e paixões são voláteis.
Resenhas: Como esse processo – encarar a depressão e a estafa – interferiram no seu trabalho?
André: Por incrível que pareça, houve um saldo positivo. Entre 2014 e 2015, eu não consegui produzir praticamente nada. Quando retornei, em 2016, após o tratamento (confesso que sair de São Paulo para Lisboa ajudou), iniciei o período mais produtivo que já tive, com uma nova linha de desenho que me é muito mais prazerosa de fazer.
De maio de 2016 até agora, fiz O idiota, Matei meu pai e foi estranho e Malditos amigos, três álbuns de HQ que somam cerca de 800 páginas ao todo, uma marca que nunca imaginei conseguir. Acho que a depressão foi um momento de zerar tudo e recomeçar, com tudo mais reorganizado. Após a apatia crônica, muitas coisas voltaram a ter importância para mim, mas outras não voltaram porque não eram importantes mesmo. Esse foi o meu ganho. Claro, falando assim, parece uma história bonitinha com final feliz. Longe disso: tenho ainda algumas recaídas e elas não são nada agradáveis.
Outra consequência da depressão no meu trabalho, foi a minha HQ Malditos amigos, que lancei agora em Portugal e, em breve, lanço também no Brasil. Nela, crio um personagem fictício, um tatuador quarentão do centro velho de São Paulo, com suas próprias questões pessoais e profissionais, mas empresto a ele a minha experiência com a depressão, essa depressão das grandes cidades.
Resenhas: E sobre adaptar uma história escrita por Dostoiévski – autor que, como sabemos, aborda em suas obras (entre outros temas): niilismo, suicídio e violência – você acredita que também imprimiu um pouco desse período da sua vida no seu traço, no roteiro, nas falas do livro?
André: A partir do momento em que vivo uma experiência, em que meu conhecimento sobre algo se amplia, em que descubro a obra de um artista, que visito um lugar diferente ou que conheço uma nova pessoa, isso vai impactar em maior ou menor grau o meu trabalho, e acredito que isso se aplique a qualquer artista. O meu estilo atual de desenho, que começou no O Idiota, é mais riscado, mais rústico e sujo que o anterior, embora estilizado.
Difícil imaginar como estaria hoje o meu desenho sem essa interrupção forçada, sem essa mudança de perspectivas. Minhas histórias foram ficando cada vez mais intimistas, sem que eu percebesse isso, com personagens solitários (embora eu definitivamente não o seja na prática). Acredito que a depressão, que hoje reconheço que já estava comigo em menor grau muitos anos antes de chegar no nível crônico, tenha influenciado não só a forma de fazer a adaptação, mas até mesmo a minha identificação com a obra de Dostoiévski e com O Idiota especificamente.
Resenhas: Qual motivo o levou a escolher O Idiota como obra a ser adaptada? E Dostoiévski?
André: Li primeiramente O Jogador e me apaixonei pela obra, a ponto de começar a ler seus livros em sequência, algo que fiz raramente até hoje. O Jogador é maravilhoso, mas o melhor do Dostoiévski ainda estava por vir, e foi um fascínio progressivo, até chegar em O Idiota, que nem considero o seu melhor, mas foi o que me arrebatou. Terminei de ler e sabia desde já que eu tinha que trabalhar com esse livro.
Dostoiévski tem um ingrediente que é fundamental para mim: ele mostra o horror, o pior do ser humano, mas sempre com o humor ao lado. Para mim, o humor, mesmo aquele humor amargo, tem que estar em tudo. Malditos amigos fala da depressão, do caos e da violência nas cidades, da solidão, mas é uma história onde há um humor ao menos implícito por toda a história. Dostoiévski é mestre em tudo, inclusive na forma como o humor está presente no trágico.
Resenhas: E como você chegou nesse traço mais bruto? Ele é inspirado na arte africana e na técnica da xilogravura? Me lembrou, até mesmo, uma literatura de cordel…
André: Até 2008, a maior parte das minhas HQs eram feitas em parceria: eu entrava como roteirista e um parceiro desenhava a HQ. Eu sabia contar uma história com desenhos, mas o meu desenho não tinha um porquê de estar ali, eu não tinha ainda algo a dizer com ele, ao contrário dos meus roteiros. Aí, eu decidi apagar tudo o que eu achava que sabia sobre fazer uma página de HQ e decidi recomeçar do zero, me avaliando.
Minha mão é pesada, eu não consigo, por exemplo, trabalhar com pincel, e a ponta do lápis quebra o tempo todo. Meu olhar não é sutil: eu enxergo círculos e quadrados, não as nuances da fisionomia de alguém. Então, fui buscar referências que fizessem com que essas características fossem qualidades e não obstáculos.
Cheguei na arte africana, com uma estilização que não é necessariamente cômica, e na xilogravura, o desenho cravado na madeira, talvez a técnica de desenho mais bruta que exista. Esses dois estilos já fascinavam aos meus olhos mas eu nunca os tinha trazido propriamente ao meu desenho. No momento em que tive essa percepção, foi quando eu me encontrei como desenhista.
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Resenhas: Por falar em subversão… Em Subversivos (1999), você abordou a época da Ditadura Militar no Brasil. Dostoiévski era responsável por diversas críticas ao Império Russo. O que vemos atualmente – generalizando – são artistas que não se posicionam ou não comentam sobre assuntos políticos, por exemplo. Você se sente confortável em falar sobre o assunto? Acaba imprimindo seus ideais em suas obras? Acha que o posicionamento político do artista é necessário?
André: Acho fundamental o posicionamento do artista sobre o que quer que seja. Senão, afinal, sobre o que é a sua arte? Isso não quer dizer, porém, que o artista tenha as respostas e só seja feito de certezas. Há assuntos sobre os quais não opino porque não tenho base para isso. As minhas HQs têm mais perguntas que afirmações.
O que eu tenho de firme e convicto é a repulsa absoluta a todo tipo de hipocrisia, de autoritarismo, de preconceito, de violência, de exploração econômica, de segregação social, racial, sexual. Talvez não por acaso, problemas cada vez mais crônicos no Brasil.
Resenhas: O que te inspira? Como é o seu processo criativo?
André: Algo que me ajudou muito a domar, ao menos um pouquinho esse processo criativo foi separar o que é criação e do que é execução. Claro que isso é absolutamente impreciso, e talvez valha mais até para os desenhos do que para o roteiro, mas é um recurso precioso para mim. A parte da criação começa com angústia, há algo a ser dito mas eu não sei exatamente ainda o que nem como. É a fase que não depende só de sentar e trabalhar. Ideias às vezes vêm, às vezes não vêm, às vezes vêm quando menos se espera. Nessa etapa, rabisco as ideias em um caderno sem pautas, assim eu os anoto da forma mais livre possível, sem pensar em formatação, parágrafos e etc.
O passo seguinte já é menos angustiante e já depende de eu sentar, focar e trabalhar. Organizo as ideias selecionadas, elimino os excessos, corrijo os erros, reescrevendo aquelas ideias iniciais o mais próximo possível de uma história coerente, resumindo a história em uma ou duas páginas de texto. A partir daí, é escrever as cenas, falas e narração. Algumas cenas que dependem de pesquisa ou de um estudo mais técnico eu pulo e deixo para o final, para não quebrar o meu fluxo criativo. Faço o mesmo se preciso citar uma informação específica ou criar o nome de um figurante. Não interrompo a escrita e deixo para trabalhar nisso ao fim de tudo. Aí, releio várias vezes cortando tudo o que não é necessário, encurtando frases, falas, cenas inteiras.
O desenho tem um processo similar. Esboço personagens num caderno. Depois esboço a ideia das páginas, esboço os desenhos sem detalhes, vou acrescentando os detalhes, até finalizar. Hoje, esse processo todo, desde o roteiro até os desenhos finalizados, faço em um iPad Pro, que carrego para onde quiser.
Resenhas: Quais são os projetos que você está trabalhando atualmente? O que tem por vir?
André: Malditos amigos, que citei antes, está para vir ao Brasil, depois de ser editado em Portugal. Tainan Rocha, parceiro meu em Que Deus te abandone, desenha agora um roteiro meu, que se chama “Virginia merece”. O desenho do Tainan é algo simplesmente criminoso de tão lindo e estou mesmo ansioso para ver isso pronto. Tenho ainda um outro roteiro quase pronto para o meu próximo álbum, trabalho numa edição independente, com histórias curtas minhas e, se tudo correr bem, tenho pronto em breve algo que faz alguns anos que eu queria elaborar: um livro com dicas sobre escrever roteiros para quadrinhos.
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Melissa Ladeia Schiewaldt é jornalista, especialista em Marketing Digital e tem MBA em Gestão de Projetos.