Resenhas  |  23.01.2018

Resenha: O Som e a Fúria – William Faulkner

*Atualizado em 11 de março de 2024

Vou começar essa resenha com uma frase bem simples, mas que resume O Som e a Fúria: que livro difícil! Acho que nem Macbeth ou Otelo foram tão complicados quanto esse clássico da literatura.

Escrita em 1929, é considerada a obra mais importante do escritor norte-americano William Faulkner, que ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1949.

Resenha: O Som e a Fúria - William Faulkner
Foto: Isabela Zamboni | Resenhas à la Carte

Mas não é porque é difícil, que é ruim – muito pelo contrário! Se você gosta de literatura clássica e principalmente leituras desafiadoras, O Som e a Fúria é um prato cheio. Segundo o prefácio dessa edição da Companhia das Letras, o romance foi criado durante um período de isolamento, depois que o autor teve seu terceiro romance recusado por diversas editoras.

Após ficar bastante abalado, William Faulkner investiu num estilo ousado, tecido por vozes narrativas distintas e saltos inesperados no tempo. Essa edição também conta com tradução de Paulo Henriques Britto e uma análise crítica de Jean-Paul Sartre publicada em 1939.

Quando comecei a ler as primeiras páginas, já fiquei baqueada. Sabia que o autor usava a técnica do fluxo de consciência – bastante utilizada por Virginia Woolf e uma clara referência ao Ulysses, de Joyce – mas nada desse nível. Porém, o choque inicial logo passa e, após algum tempo de leitura, é possível entender e apreciar o estilo de Faulkner.

Mas, afinal, do que se trata O Som e a Fúria? É a história da violenta decadência dos Compson, família aristocrática do sul dos Estados Unidos. Como a trama se desenrola no final da década de 20, vemos muitos ecos do preconceito racial e da xenofobia. Os EUA passavam por um forte momento de crise econômica, então é possível conferir na obra de Faulkner também muita pobreza e um país devastado.

Acompanhamos a história por quatro vozes narrativas diferentes: a primeira, pelo olhar de Benjamin, um dos filhos dos Compson, homem que “nasceu bobo”, com algum tipo de deficiência mental. São muitas passagens sem nexo, com o passado misturado ao presente, além de fortes sensações que pertencem a um cérebro atribulado e confuso. Por isso o grande baque da leitura, é desafiador acompanhar esse vaivém de pensamentos.

A segunda voz narrativa é do melancólico Quentin, mais um dos filhos da família Compson. Confesso que essa foi a parte mais complicada do livro, que deu vontade de abandonar. Porém, é justamente a parcela mais densa, sendo necessário reler várias vezes.

Quentin, enquanto jovem adulto, foi estudar em Harvard, após seus pais terem vendido parte de sua propriedade para ajudar a pagar pelos estudos do filho. No entanto, enquanto acompanhamos um dia na vida de Quentin, também somos apresentados com frequência ao uso do fluxo de consciência: enquanto ele caminha pela cidade, lembra-se de momentos do passado, ao mesmo tempo em que sua mente vagueia por descrições e recordações de sua infância, especialmente de sua irmã Caddie, por quem nutria um amor fervoroso e praticamente incestuoso. Em vários momentos Faulkner não usa pontuação e opta por utilizar recursos estilísticos refinados, que exige perseverança por parte de quem lê.

A terceira parte de O Som e a Fúria é uma das mais revoltantes: o ponto de vista de Jason, o filho mais novo que ficou para trás, morando com a mãe, D. Caroline, e os criados negros, Dilsey, T.P., Luster e Frony. Inclusive, Jason é considerado um dos maiores vilões da literatura norte-americana até hoje.

Ele chantageia a própria irmã e rouba o dinheiro que esta encaminha para a filha; é racista, misógino e preconceituoso; um homem agressivo, revoltado e que acredita ter sido injustiçado pela família. Aqui, a narrativa torna-se bem mais fácil, simples e tranquila de engatar. No entanto, prepare-se para passar raiva, ódio e detestar cada palavra dita por esse personagem.

Por fim, eu esperava que a última voz narrativa fosse a de Caddie, a filha dos Compson, mas não é bem como acontece. A narração é em terceira pessoa e a personagem central é Dilsey, a criada que é praticamente a matriarca da casa e sempre trabalhou naquele lar tomado pelas tragédias. Inclusive, é nesse momento que o tradutor Paulo Henriques Britto faz observações importantes a respeito das falas dos negros e dos brancos em relação à tradução para o português (vale muito a pena conferir).

As duas personagens mais intrigantes são Caddie e sua filha Quentin (nome que ganhou em homenagem ao tio, irmão de Caddie, para deixar a leitura ainda mais confusa). Em nenhum momento acompanhamos o ponto de vista das duas, só as conhecemos a partir do que os outros personagens dizem ou lembram a respeito delas. E achei muito bom o final de ambas, que é mostrado no apêndice dessa edição da Companhia das Letras. Sinto que somente essas duas eram mulheres à frente de seu tempo e que também passaram por muitas provações naquela família.

Para comprar O Som e a Fúria, é só clicar no link abaixo:

Como já mencionei, o livro contém uma análise de Sartre ao final, que faz uma reflexão impressionante sobre a questão da temporalidade na obra de Faulkner. O mais interessante é como o filósofo traz à tona que a literatura de Faulkner deixa as personagens presas ao presente e ao passado, como se o futuro não existisse.

Durante toda a leitura, é como se lêssemos sempre algo que já se passou, mesmo que se passe no presente. Os tempos se mesclam, fundem-se e quebram-se na narrativa de O Som e a Fúria. A passagem em que Quentin fala sobre o relógio de seu avô é uma delas:

“Era o relógio de meu avô, e quando o ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda esperança e todo desejo; é extremamente provável que você o uso para lograr o reducto absurdum de toda experiência humana, que será tão pouco adaptado às suas necessidades individuais quanto foi às dele e às do pai dele. Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios.” (p.79)

A frase abaixo também sintetiza bastante toda a narrativa do livro, como podemos perceber em diversas passagens:

“O pai disse que o homem é o somatório de suas desgraças. A gente fica achando que um dia as desgraças se cansam, mas aí o tempo é que é a sua desgraça disse o pai. Uma gaivota presa num fio invisível o espaço cruzou. Você leva o símbolo da sua frustração para a eternidade. Então as asas são maiores disse o pai só quem sabe tocar harpa.” (p.108)

Outra observação interessante é que, ao mesmo tempo em que a escrita de Faulkner é riquíssima em detalhes, parece não condizer com o restante da história, que oferece tantas substâncias melodramáticas e folhetinescas. O livro é dividido em partes tão diferentes uma das outras, que parecem outros autores dentro de uma mesma obra.

Encerro essa resenha com uma citação de Macbeth, do Shakespeare, relacionada com O Som e a Fúria, que me fez ficar refletindo sobre esse livro incrível que acabei de ler:

O homem passa a vida lutando contra o tempo e o tempo o corrói como um ácido, arranca-o de si mesmo e o impede de realizar o humano. Tudo é absurdo: “A vida […] é uma história cheia de som e fúria, contada por um idiota e que não significa nada”.

Nota:

banner classicos
Anterior
Próximo
Compartilhe
Comente Aqui
2 Comentários “Resenha: O Som e a Fúria – William Faulkner”
[fbcomments]
  1. eduardo medeiros      05 nov 2024 // 10H31

    Olá, excelente resenha. Eu tento mas ainda não consegui ler Faulkner…o sujeito que inventou esse negócio de “fluxo de consciência” deveria ser processado pelo bem da clareza da narrativa….rs

    parabéns pelo site.

  2. JOAO PAULO DE SOUZA      16 jan 2024 // 11H31

    Gostaria de imprimir a resenha. Gosto de ler por meio físico.