Resenhas  |  28.09.2022

Resenha: A Inquilina de Wildfell Hall – Anne Brontë

A Inquilina de Wildfell Hall (ou Senhora de Wildfell Hall, depende da tradução) é um livro excepcional, que não sei porque demorei tanto para começar a ler. A obra é o grande destaque de Anne, a irmã Brontë que eu ainda não conhecia. Mas, como sou apaixonada pelos livros das outras irmãs (O Morro dos Ventos Uivantes e Jane Eyre) não poderia deixar de ler esse clássico.

Inclusive, vou começar Agnes Grey na sequência, já que as irmãs Brontë dificilmente decepcionam. Esse livro, apesar de ser o menos comentado (chegou até a ser censurado pela própria Charlotte, depois que Anne faleceu), considero bastante ousado e corajoso. Anne Brontë foi muito à frente de seu tempo e retratou um relacionamento abusivo de um jeito tão escancarado, realista, que muito do que acompanhamos nessa narrativa do século XIX ainda acontece hoje, infelizmente.

Mas antes de entrarmos nos pormenores, vamos à sinopse:

Gilbert Markham está intrigado com Helen Graham, a bela e misteriosa mulher que acabou de se mudar para Wildfell Hall com o filho e sem o marido. Gilbert é rápido em oferecer amizade, mas, quando o comportamento recluso da inquilina começa a ser motivo de fofoca na cidade, ele se pergunta o que mais pode haver na história daquela família. Quando Helen permite que Gilbert leia seu diário, ele começa a entender os detalhes obscuros de sua vida, seu casamento desastroso e a situação em que a vizinha se encontra. Narrado com precisão e carisma, A inquilina de Wildfell Hall é uma descrição poderosa da luta de uma mulher por independência na Inglaterra vitoriana.

Foto: Isabela Zamboni/Resenhas à la Carte

Eu li a versão da Penguin Companhia no Kindle, sendo que o livro ultrapassa as 600 páginas. Com os textos de apoio de Stevie Davies e tradução de Débora Landsberg, ficou ainda melhor acompanhar a leitura e entender o contexto da época.

Essa versão de A Inquilina de Wildfell Hall inclui também o prefácio à 2ª edição, em que a própria Anne rebate as críticas feitas à sua obra, já que muitos homens se sentiram ofendidos com os personagens masculinos retratados no romance. Destaco aqui um trecho especialmente interessante desse prefácio, datado de 1848:

“Todos os romances são ou deveriam ser escritos para que tanto homens como mulheres os leiam, e sou incapaz de conceber como um homem se permitiria escrever algo que fosse realmente deplorável para uma mulher, ou por que uma mulher deveria ser censurada por escrever algo que seria decente e conveniente para um homem”.

Vale ressaltar que as irmãs Brontë assinavam com pseudônimos, pois mulheres não tinham absolutamente nenhum prestígio ou reconhecimento na época. Assim, Anne era Acton Bell (A.B, suas iniciais), Charlotte era Currer Bell e Emily, Ellis Bell.

O livro causou muito burburinho na época, e Anne foi alvo de duras críticas por conta de seu realismo narrativo. Ela não tentou amenizar nada, seu compromisso era com a verdade. A heroína da obra, Helen, após passar por muito sofrimento, desafiou todas as convenções da Inglaterra do século XIX ao fugir de um marido abusivo e devasso.

Hoje, parece absurdo pensar nisso, mas imagine no século XIX, numa época em que mulheres eram consideradas propriedades dos maridos e não tinham direito a nada – sem pai, irmãos ou esposo, uma mulher não existia em termos legais e jurídicos. Até os filhos eram propriedades do homem. Não havia posse, propriedade ou qualquer tipo de bem material que fosse direcionada a uma mulher, elas dependiam 100% do sexo masculino para sobreviver.

No texto de apoio, Steve Davies reforça essa ideia:

“Anne Brontë põe em foco a natureza expropriada e marginalizada da vida das mulheres. Helen não tem direito à sua casa nem sequer a seu nome. Wildfell Hall é um manifesto feminista de inteligência e poder revolucionário”.

Em relação à narrativa, temos várias camadas. O livro começa com Gilbert Markham escrevendo uma carta a seu amigo para contar um evento peculiar em sua vida pessoal. Esse evento seria a chegada de Helen Graham ao vilarejo onde ele morava com a família.

Helen era uma mulher misteriosa, que não contava muito sobre seu passado. Quando mudou-se para Wildfell Hall junto do pequeno Arthur, seu filho de 4 anos, disse aos vizinhos e ao próprio Markham que era viúva e pintora, ou seja, garantia seu sustento fazendo retratos e pinturas diversas.

Depois de sua mudança a esse local ermo, com uma pequena comunidade (bem fofoqueira, diga-se de passagem), Helen já começa a enfrentar a opinião alheia sobre como ela deveria criar seu filho. Muito apegada à criança, ela faz de tudo para ensinar o garoto a ser uma pessoa educada e moralmente superior, mas os moradores da região acreditam que ela está mimando demais a criança, sugerindo que ela estava o transformando em “um maricas”.

É nesse momento que Helen começa a discutir e levantar questões sobre esse sexismo tão escancarado da época. Se ela tivesse uma filha mulher, estariam questionando sua criação tão cuidadosa? Essas críticas seriam as mesmas se a criança fosse do sexo feminino?

Segundo Davies, “Anne Brontë, que também era educadora, analisou a falta de sentido e razão entre os homens como consequência de um sistema de valores baseado na veneração da masculinidade”. E vemos o tempo todo no livro essa veneração da masculinidade e o desprezo pela inteligência feminina. Anne realmente queria mostrar personagens reais, acontecimentos comuns na vida de uma mulher britânica que não tinha muita alternativa a não ser engolir a seco e aceitar de bom grado as inúmeras críticas que chegavam todos os dias.

Assim, em meio às fofocas e eventos na região de Wildfell Hall, Markham começa a se interessar por Helen. Quando finalmente se aproxima e exprime seus sentimentos, a jovem lhe entrega um diário e diz que ele só a conheceria de verdade quando entrasse em contato com aquelas páginas. A partir daí, entramos em uma nova – e extensa – parte do livro: passando pelo passado de Helen, desde quando era uma moça inexperiente, ingênua e apaixonada, até chegar no presente, essa mulher forte que parecia ter envelhecido tanto em pouquíssimo tempo.

É nesse momento que a leitura fica densa e até difícil de acompanhar (especialmente se você é mulher e já vivenciou um relacionamento tóxico/abusivo/traumático). Helen foi contra os conselhos da tia e casou-se com Arthur Huntingdon, um homem carismático, bem apessoado, divertido, porém totalmente boêmio. Mesmo sabendo da má reputação de Arthur, ela se encanta por esse homem atraente, de idade parecida com a sua. A princípio, como ela bem escreve em seu diário, Helen acredita que pode mudá-lo, que o casamento será uma forma de mostrá-lo o caminho das virtudes e da fé.

No entanto, “Helen ama; é abusada; se recolhe com fúria e mágoa; e, por seu recolhimento (interpretado como rejeição) é rejeitada; então ela rejeita de fato.” Arthur se mostra um homem mimado, sem nenhum interesse pessoal a não ser por festas e libertinagem com os amigos. Bebe muito, trata Helen como sua propriedade e é obsessivo o tempo inteiro. Em algumas passagens, ele demonstra ciúme até da relação de Helen com Deus (sim!) e do amor que ela demonstra ao filho.

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Mas, após algum tempo, Huntingdon se entedia com a esposa e passa vários meses fora; quando retorna, está sempre alcoolizado e pedindo por mais vinho. Com o passar dos anos, a relação se degrada a tal ponto que se torna insustentável.

Qualquer mulher nessa situação, naquela época, aceitaria essa péssima condição matrimonial e seria obrigada a viver naquele inferno; mas Helen é destemida, resoluta e perspicaz, diferente da maioria. Ela consegue, após muito esforço, tristeza e humilhação, fugir para Wildfell Hall com a ajuda do irmão. “A heroína fugitiva dá cobertura para uma autora anômala em conflito com a sociedade masculina na qual e contra a qual formara sua verdade pessoal errante”, explica Davies.

Não vou continuar a história para não estragar a experiência da leitura, mas há um acontecimento próximo do final que me deixou perplexa. Atribuo a atitude insana da protagonista a um senso de dever/obediência muito grande, considerando que ela é extremamente religiosa. Inclusive, essa é uma das principais facetas de Helen: graças à sua fé na palavra divina, ela consegue se reerguer.

Um ponto muito interessante de A Inquilina de Wildfell Hall é como Anne mostra a força das mulheres em contraponto aos homens mimados, que agem como crianças, sem nenhuma responsabilidade ou bom senso. “Homens ‘mimados’ são o centro trágico do romance. Huntingdon é tão, tão mimado que nunca consegue crescer; Markham é resultado do narcisismo que torna suas opiniões rasas“, explica Davies na introdução do livro.

Os amigos mais próximos de Huntingdon são devassos, não têm outros interesses além da caça, são totalmente entregues ao álcool e agem como bebês atrás de uma mamadeira. Enquanto as mulheres ficam em casa, obedientes e entediadas com afazeres domésticos, os homens se reúnem para farrear e, quando se esgotam, voltam correndo ao encontro das esposas, que são constantemente desprezadas e inferiorizadas.

Nem mesmo Markham, o narrador que está lendo o diário de Helen, é um homem de grandes virtudes. Raso e infantil, ele também é levado pelas emoções e age como uma criança quando está perto de Helen. Porém, em comparação aos outros, é mais ameno, mais contido e menos arruaceiro. Contudo, para a nossa protagonista, que passou por maus bocados e uma vida repleta de tragédias, não é de todo mal.

Levando esses aspectos em consideração, resolvi sintetizar a genialidade da autora:

  • Helen vai totalmente contra as convenções da época e foge do marido abusivo;
  • As personagens masculinas são degradantes e com características majoritariamente negativas;
  • A protagonista toma as próprias decisões, sem considerar a opinião alheia;
  • Helen acredita que seu filho deve ser criado da mesma forma que uma garota, ou seja, sem distinção entre sexo feminino e masculino;
  • Ela acredita que as mulheres podem se virar sozinhas e manter o próprio sustento (como no caso das pinturas, por exemplo);
  • Não há fofoca ou convenção social da época que mude a cabeça de Helen. Ela é resoluta, esperta e muito íntegra;
  • Sua fé é inabalável, mesmo em momentos de grandes dificuldades;
  • Apesar de tudo, ela consegue perdoar o marido adúltero e seguir adiante com sua vida;
  • O romance entre os protagonistas não é o foco da narrativa. Mesmo existindo uma paixonite, não há um amor avassalador, um encontro de almas, como no Morro dos Ventos Uivantes.

Depois de tanta coragem, Anne Brontë não deveria ser considerada a irmã mais desconhecida, com as obras menos comentadas. Seu estilo é primoroso, praticamente da escola realista de literatura. E o mais assustador é que A Inquilina de Wildfell Hall ainda é atualíssimo, mostrando o quanto ainda precisamos evoluir como sociedade.

NOTA: ★★★★ (só não dei 5 estrelas porque ainda prefiro a intensidade da Emily Brontë).

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*Última atualização em 4 de março de 2024

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