Resenhas  |  25.02.2019

Resenha: Um Quarto com Vista – E.M. Forster

*Atualizado em 8 de março de 2024

Comecei a leitura de Um Quarto com Vista, de E.M. Forster, após me interessar pela minissérie Howards End, também baseado em uma obra homônima do autor. Como achei os personagens bem diferentes e inusitados para o contexto da época, aproveitei que esse livro estava disponível no Kindle Unlimited e fui conferir o estilo do escritor britânico.

Resenha: Um Quarto com Vista - E.M. Forster
Foto: Isabela Zamboni/Resenhas à la Carte

Um Quarto com Vista é dividido em duas partes: a primeira passa-se em Florença, na Itália, a segunda em Windy Corner, um bairro no interior da Inglaterra. A sinopse é bem simples:

“Lucy Honeychurch, moça ingênua e recatada, representante de uma aristocracia rural ‘impura’, filha de um advogado que construiu uma casa no campo, irá realizar um casamento de interesse com Cecyl Vyse, membro da aristocracia urbana londrina, que conheceu na Itália. Mas sua viagem acabará mudando de modo radical sua concepção de mundo e de si mesma.”

Na verdade, a sinopse oficial conta muito mais, mas achei que essa parte sintetiza melhor a obra como um todo. O livro tenta comparar a insuficiente “vida inglesa” com a beleza mítica da Itália, principalmente pelas descrições de Florença. A primeira parte é toda sobre uma pequena viagem de Lucy à cidade italiana com sua prima e dama de companhia Catherine Bartlett.

Na pensão em que se hospeda, a garota se revolta (chamo de garota porque não sei exatamente sua idade, mas todos a tratam como alguém bem jovem) porque seu quarto não tem uma vista agradável, como havia reservado previamente com a dona da pensão.

A partir de sua indignação, ela conhece outros hóspedes – todos britânicos – que a acompanham em alguns momentos da viagem. Basicamente a primeira parte é somente Lucy andando por Florença ao lado de outros personagens BEM irritantes, diga-se de passagem. Dois párocos: Sr. Beebe e Sr. Eager; um senhor e seu filho – os Emersons, pai e filho, que todos consideram ‘mau educados’; Eleanor Lavish, uma mulher arrogante metida a escritora e outros personagens pouco importantes.

Lucy é uma garota mimada, bastante ingênua, quase infantil, bem dependente da prima Charlotte. Na primeira parte do livro, são poucos os acontecimentos; basicamente temos Lucy turistando pela cidade. Nessas caminhadas por Florença, surge um controverso e leve interesse de Lucy por George Emerson – um homem recatado, misterioso, mas de boa índole. Há algumas cenas em que os dois trocam algumas palavras e, em uma determinada viagem feita em grupo, os dois se aproximam com mais intensidade.

No entanto, antes de começar a comentar sobre a segunda parte da obra, já ressalto que essa não foi uma leitura muito prazerosa. Tive interesse em continuar – esperando algum grande acontecimento, reviravolta ou até mesmo mais profundidade em alguns temas que o autor toca de vez em quando – mas não me cativou. Os personagens não têm carisma, o ritmo da narrativa é lento e as discussões a respeito da diferença de classes na Inglaterra do começo do século XX não foram tão entusiasmantes.

Claro que E.M. Forster traz uma ironia sutil nas descrições dos personagens da pensão – é praticamente um retrato da hipocrisia inglesa, em contraste com o povo florentino, considerado mais passional. No entanto, nada que não tenha sido expresso em obras como Orgulho e Preconceito, Mrs. Dalloway ou O Amante de Lady Chatterley.

Porém, como indica o prefácio de Luiz Ruffato, “a força de Forster o leitor deve buscar não na técnica novelística mas no radicalismo de suas posições políticas, fruto talvez de sua identificação com o grupo de Bloomsbury, do qual fazia parte”. Ou seja: a narrativa em si não é o grande triunfo de Forster, mas suas críticas e ideais.

Agora vamos à segunda parte da trama: Lucy voltou para casa em Windy Corner e está noiva de Cecyl Vyse, aristocrata que conheceu durante uma viagem à Roma (logo após os passeios por Florença). O homem parece ser o símbolo da virilidade, mas nem um beijo na “amada” teve coragem de dar. Cecyl é o tipo de homem que adora falar sobre si e demonstrar o quanto sabe discutir diversos assuntos – política, economia, e até mesmo fofocas sobre o povo local – mas, na verdade, é um verdadeiro “chato”, como a própria Lucy pontua em um certo momento do livro.

Resenha: Um Quarto com Vista - E.M. Forster
Foto: Isabela Zamboni/Resenhas à la Carte

“Cecil de novo. Ele não ousa permitir que uma mulher decida por si mesma. É do tipo que atrasou um milênio o destino da Europa. Durante a vida toda, ele procurará formá-la, dizer-lhe o que é encantador, divertido ou elegante, dizer-lhe o que um homem pensa em termos femininos; e a senhorita, a senhorita, de todas as mulheres, dá ouvidos a ele em vez de ouvir a própria voz.”

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Porém, casamentos naquela época eram apenas pelo status social: nem sabemos ao certo se Lucy realmente gosta de Cecyl, ou se aceitou a proposta de casamento apenas porque foi levada a isso. A influência da família era gigante – principalmente com moças jovens e que buscavam certo prestígio na sociedade.

Ainda no começo da parte 2, Lucy continua agindo com ingenuidade e lutando contra si mesma. Dá vontade de dar um chacoalhão na moça e gritar ‘ACORDA PRA VIDA!’, hahaha. Mas essa sensação de espera, de nervosismo, de tensão na narrativa é um dos pontos altos do autor. Nunca sabemos o que virá em seguida ou o que esperar dos personagens.

Segundo o texto de apoio de Ruffato, “Lucy representa a luta da mulher contra a sujeição social, o convencionalismo e a mentalidade retrógrada. E, se [Forster] demonstra, como romancista, um perfeito equilíbrio na caracterização dos personagens — mesmo a Cecil dedica alguma compreensão —, é porque sabe que “a vida é fácil de narrar, mas espantosa de se praticar”.

Mesmo que a parte 1 seja um tanto enfadonha, a parte 2 resgata o interesse do leitor. A evolução – e revelação – de Lucy, a aproximação de George e a revolta crescente com Cecil criam um novo laço de empatia; as personagens parecem mais soltas, mais vivas do que na parte 1, em que a narrativa parece progredir lentamente e sem entusiasmo.

“Ela refletia que era impossível predizer o futuro com qualquer grau de exatidão, que é impossível ensaiar a vida. Uma falha no cenário, um rosto na plateia, uma irrupção da audiência no palco, e todos nossos gestos cuidadosamente planejados mais nada significam, ou significam coisas demais.”

O autor E.M. Forster fazia parte da classe média alta inglesa, estudou em Cambridge, morou vários anos na Itália, Grécia, Alemanha e Índia, aprofundando sua visão de mundo humanista liberal contrária à moral vitoriana da sociedade britânica: conservadora, tradicionalista, preconceituosa. Essa mesma visão de mundo faz do título do livro uma metáfora: um quarto com vista, isto é, a possibilidade de ver além.

Portanto, apesar de não ter sido tão cativante quanto eu gostaria, Um Quarto com Vista é uma obra que traz diferentes pontos de vista dos mais diversos personagens. A evolução moral e social de Lucy, George e até mesmo Cecil faz do livro uma boa alternativa para discutir as nuances e camadas da estratificação social no início do século XX.

NOTA

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