Frases  |  03.07.2018

Poemas e frases de Hilda Hilst

*Atualizado em 23 de abril de 2021

Que tal aproveitar para conhecer melhor a obra de Hilda Hilst? Confira alguns trechos de poemas, textos, teatros e prosa escritos pela autora!

Poemas e frases de Hilda Hilst

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“Dez chamamentos ao amigo” é uma série de poemas do livro “Júbilo, memória, noviciado da paixão”, publicado em 1974.

I
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

II
Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora

Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.

III
Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia

E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo

Meu todo corajoso de Poesia
Te tomava. Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga

E amavio contente o amor teria sido.

IV
Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida.

Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.

Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.

Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página

Ilustrada de revista
Editoria; de jornal
Teia cindida.

Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.

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“Da morte. Odes mínimas” é uma série de 50 poemas, publicada pela primeira vez em 1980.

I
Te batizar de novo.
Te nomear num trançado de teias
E ao invés de Morte
Te chamar Insana
Fulva
Feixe de flautas
Calha
Candeia
Palma, por que não?
Te recriar nuns arcoíris
Da alma, nuns possíveis
Construir teu nome
E cantar teus nomes perecíveis
Palha
Corça
Nula
Praia
Por que não?

II
Demora-te sobre a minha hora.
Antes de me tomar, demora.
Que tu me percorras cuidadosa, etérea
Que eu te conheça lícita, terrena

Duas fortes mulheres
Na sua dura hora.

Que me tomes sem pena
Mas voluptuosa, eterna
Como as fêmeas da Terra.

E a ti, te conhecendo
Que eu me faça carne
E posse
Como fazem os homens.

III
Pertencente te carrego:
Dorso mutante, morte.
Há milênios te sei
E nunca te conheço.
Nós, consortes do tempo
Amada morte
Beijo-te o flanco
Os dentes
Caminho candente a tua sorte
A minha. Te cavalgo. Tento.

IV
Vinda do fundo, luzindo
Ou atadura, escondendo,
Vindo escura
Ou pegajosa lambendo
Vinda do alto
Ou das ferraduras
Memoriosa se dizendo
Calada ou nova
Vinda da coitadez
Ou régia numas escadas
Subindo

Amada
Torpe
Esquiva

Benvinda.

V
Túrgida-mínima
Como virás, morte minha?

Intrincada. Nos nós.
Num passadiço de linhas.
Como virás?

Nos caracóis, na semente
Em sépia, em rosa mordente
Como te emoldurar?

Afilada
Ferindo como as estacas
Ou dulcíssima lambendo

Como me tomarás?

VI
Ferrugem esboçada

Perfil sem dracma

Crista pontuda
No timbre liso

Um oco insuspeitado
Na planície

Um cisco, um nada
À tona das águas

Brevíssima contração
Te reconheço, amada.

VII
Perderás de mim
Todas as horas

Porque só me tomarás
A uma determinada hora.

E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez.
Imagina-te o que perderás
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta, e caminhei
A chama dos caminhos

Atravessei o sol
Toquei o muro de dentro
Dos amigos

A boca nos sentimentos

E fui tomada, ferida
De malassombros, de gozo

Morte, imagina-te.

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Poemas e frases de Hilda Hilst, a homenageada da FLIP 2018!

FOTO: Divulgação

“Do desejo” é uma série de dez poemas, lançada em livro homônimo em 1992. O volume reunia ainda os poemas de “Da noite”, “Amavisse”, “Sobre a tua grande face” e “Alcoólicas”.

Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.

I
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

II
Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e rictus na tua cara
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
Sem dono, um adorar-te vívido mas livre.
E que escura me faço se abocanhas de mim
Palavras e resíduos. Me vêm fomes
Agonias de grandes espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.

III
Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

IV
Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?
Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Esse da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.

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Leia a resenha de Pornô Chic!

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“Cantares de perda e predileção” é um livro de poemas publicado em 1983.

I
Vida da minha alma:
Recaminhei casas e paisagens
Buscando-me a mim, minha tua cara.
Recaminhei os escombros da tarde
Folhas enegrecidas, gomos, cascas
Papéis de terra e tinta sob as árvores
Nichos onde nos confessamos, praças

Revi os cães. Não os mesmos. Outros
De igual destino, loucos, tristes,
Nós dois, meu ódio-amor, atravessando
Cinzas e paredões, o percurso da vida.

Busquei a luz e o amor. Humana, atenta
Como quem busca a boca nos confins da sede.
Recaminhei as nossas construções, tijolos
Pás, a areia dos dias

E tudo que encontrei te digo agora:
Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas armadilhas.

II
Que dor desses calendários
Sumidiços, fatos, datas
O tempo envolto em visgo
Minha cara buscando
Teu rosto reversivo.

Que dor no branco e negro
Desses negativos
Lisura congelada do papel
Fatos roídos
E teus dedos buscando
A carnação da vida.

Que dor de abraços
Que dor de transparência
E gestos nulos
Derretidos retratos
Fotos fitas

Que rolo sinistroso
Nas gavetas.

Que gosto esse do Tempo
De estancar o jorro de umas vidas.

III
Se a tua vida se estender
Mais do que a minha
Lembra-te, meu ódio-amor,
Das cores que vivíamos
Quando o tempo do amor nos envolvia.
Do ouro. Do vermelho das carícias.
Das tintas de um ciúme antigo
Derramado
Sobre o meu corpo suspeito de conquistas.
Do castanho de luz do teu olhar
Sobre o dorso das aves. Daquelas árvores:
Estrias de um verde-cinza que tocávamos.

E folhas da cor das tempestades
contornando o espaço
De dor e afastamento.

Tempo turquesa e prata
Meu ódio-amor, senhor da minha vida.
Lembra-te de nós. Em azul. Na luz da caridade.

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“Cantares do sem-nome e de partidas”, publicado em 1995 por Massao Ohno, é o último livro de poesia de Hilda Hilst.

I
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.

II
E só me veja
No não merecimento das conquistas.
De pé. Nas plataformas, nas escadas
Ou através de umas janelas baças:
Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias.
E só me veja no não merecimento e interdita:
Papéis, valises, tomos, sobretudos
Eu-alguém travestida de luto. (E um olhar
de púrpura e desgosto, vendo através de mim
navios e dorsos).
Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes.
Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis
Machucadas de gozo.
E que jamais perceba o rocio da chama:
Este molhado fulgor sobre o meu rosto.

III
Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.
Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.

VII
Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.
Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos
Porque me fiz tanto de ressentimentos
Que o melhor é partir. E te mandar escritos.
Rios de rumor no peito: que te viram subir
A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras
Mas com a mulher, aquela,
Que sempre diante dela me soube tão pequena.
Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os.
Perdi-me tanto em ti
Que quando estou contigo não sou vista
E quando estás comigo vêem aquela.

VIII
Aquela que não te pertence por mais queira
(Porque ser pertencente
É entregar a alma a uma Cara, a de áspide
Escura e clara, negra e transparente), Ai!
Saber-se pertencente é ter mais nada.
É ter tudo também.
É como ter o rio, aquele que deságua
Nas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns.
Aquela que não te pertence não tem corpo.
Porque corpo é um conceito suposto de matéria
E finito. E aquela é luz. E etérea.
Pertencente é não ter rosto. É ser amante
De um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã.
Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender.
É vida e ferida ao mesmo tempo, “ESSE”
Que bem me sabe inteira pertencida.

IX
Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.
Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.
E pensas maravilha quando pensas anca
Quando pensas virilha pensas gozo.
Mas tudo mais falece quando pensas tardança
E te despedes.
E quando pensas breve
Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano
Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.
E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas
Luta, ascese, e as mós do tempo vão triturando
Tua esmaltada garganta… Mas assim mesmo
Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas…
Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade
A esperança.

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Poemas e frases de Hilda Hilst, a homenageada da FLIP 2018!

Casa de Hilda. FOTO: Divulgação

“Tu não te moves de ti” é um livro de prosa que reúne três novelas (“Tadeu”, “Matamoros” e “Axelrod”) e foi publicado em 1980.

Axelrod (da proporção)

E enquanto viver
Também depois, na luz
Ou num vazio fundo
Perguntarei: até quando?
Até que se desfaçam
As cordas do sentir.
Nunca até quando.

Significante, perolado, o todo dele estendido em jade lá no fundo, assim a si mesmo se via, ele via-se, humanoso, respirando historicidade, historiador composto, umas risadas hôhô estufadas como aquelas antigas lustrosas gravatas, via-se em ordem, os livros anotados, vermelho-cereja sobre os bolcheviques, pequenas cruzes verdes verticais amarelas nas brasilidades revolucionárias, sangue nenhum sob as palmeiras, sangue nenhum à vista, só no cimento dos quadrados, no centro das grades, no escuro das paredes, sangue em segredo, ah disso ele sabia, mas vivo, comprido, significante na sua austeridade era melhor calar o sangue em segredo, depois que tinha ele a ver com isso? A ver com os homens? homens num só ritmo, sangue sempre, ambições, as máscaras endurecidas sobre a cara, repetia curioso, curioso meus alunos a verdade é nil novi super terram, nada de novo, nada de novo professor Axelrod Silva? Nada, roda sempre cuspindo a mesma água, axial a história meus queridos, feixes duros partindo de um só eixo, intensíssima ordem, a luz batendo nos feixes e no eixo em diversificadas horas é que vos dá a ideia de que na história nada se repete, oh sim tudo, tudo é um só dente, uma só carne, uma garra grossa, um grossar indecomponível, um isso para sempre. Escavar o que, se o seu existir, o seu de fora, a ciência dos feitos, a dura história, grafias, todos esses acontecimentos possuíam a qualidade soberba das perobas, perenes, ele ouvira, os trens passarão por esses dormentes, meu filho, para sempre para sempre. Pra onde vão os trens meu pai? Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços no mapa, e depois o pai ria: também pra lugar algum meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti. Mover-se. Por que não? Agora em férias, no segundo semestre falaria das revoluções, de muitas, vermelhas verdes negras amarelas, enfoques adequados nem veementes nem solenes, enfoques despidos de adorno, o tom de voz nem oleoso nem vivaz, um sobre-tom doce–pardacento, o lenço nas lentes, tirando e pondo os óculos, já se via no segundo semestre tirando pondo vivo comprido significante repetindo: pois é sempre o isso meus queridos, cinco ou seis pensamenteando, folhetos folhetins afrescos, sussurro no casebre, na casinhola das ferramentas, no poço seco, e depois uma nítida vivosa sangueira, e em seguida o quê? um vertical de luzes cristalizado por um tempo, um limpar de lixões, alguns anos, e outra vez ideias, bandeirolas, tudo da cor conforme a cor de novos cinco ou seis.

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A novela “Rútilo nada” é narrada por várias vozes e foi publicada pela primeira vez em 1993.

Os sentimentos vastos não têm nome. Perdas, deslumbramentos, catástrofes do espírito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos não têm boca, fundo de soturnez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto. Inventar palavras, quebrá-las, recompô-las, ajustar-me digno diante de tanta ferida, teria sido preciso, Lucas meu amor, meus 35 anos de vida colados a um indescritível verdugo, alguém Humano, e há tantos indescritíveis Humanos feito de fúria e desesperança, existindo apenas para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia. Mas indigno e desesperado me atiro sobre o vidro que recobre a tua cara, e várias mãos, de amigos? de minha filha adolescente? de meu pai? ou quem sabe as mãos de teus jovens amigos repuxam meu imundo blusão e eu colo a minha boca na direção da tua boca e um molhado de espuma embaça aquela cintilância que foi a tua cara. Grito. Gritos finos de marfim de uma cadela abandonada tentando enfiar a cabeça na axila de Deus. De uma cadela sim. Porque as fêmeas conhecem tudo da dor, fendem-se ou são desventradas para dar à luz e eu Lucius Kod neste agora me sei mais uma esquálida cadela, a morte e não a vida escoando de mim, musgos finos pendendo dos abismos, estou caindo e ao meu redor as caras pétreas, quem são? amigos? minha filha adolescente? meu pai? teus jovens amigos? Caras graníticas, ódio mudo e vergonha, palavras que vêm de longe, evanescentes mas tão nítidas como fulgentes estiletes, palavras de supostos éticos Humanos:

Constrangedor Louco Demente

Absurdo Intolerável

Ducente Deo começo estes escritos deveria ter dito. Tendo Deus como guia, começo estes escritos deveria ter dito.

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Poemas e frases de Hilda Hilst, a homenageada da FLIP 2018!

Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst FOTO: Reprodução

“Cartas de um sedutor” faz parte da tetralogia obscena de Hilda Hilst e foi publicado em 1991.

XVIII
Palomita, lembras-te que mergulhavas o meu pau na tua xícara de chocolate e em seguida me lambias o ganso? Ahhh! tua formosa língua! Evoco todos os ruídos, todos os tons da paisagem daquelas tardes… cigarras, os anus pretos (aves cuculiformes da família dos cuculídeos… meu Deus!) e os cheiros… o jasmim-manga, os limoeiros… e teus movimentos suaves, alongados, meus movimentos frenéticos… Ahhh! Marcel, se te lembras, sentiu todo um universo com as dele madeleines…Deve ter sugado aquela manjuba magnífica do dele motorista com madeleines e avós e chás e tudo…Ah, irmanita, as cortinas malvas, a jarra de prata, os crisântemos dourados, algumas pétalas sobre a mesa de mogno, tu diluída nos meus olhos semicerrados, teu hálito de chocolate e de… “solução fecundante” como diria aquele teu juiz. Ando me sentindo um escroto de um escritor e quando isso começa não acaba mais. O que me faz pensar que eu talvez os seja é toda aquela minha história-tara do dedão do pé do pai. Pulhices de escritor. Outro dia contei ao Tom a história do dedão do pai, como se fosse a história de outro cara, não a minha. Sabes o que me respondeu? “Se algum filho meu tivesse a tara de me chupar o dedão eu dormiria armado.” Ciao. Petite chegou. Apaixonou-se. Uma maçada. Continuo daqui a pouco.

(…)
Sábado
O fosco. O difuso. O emaranhado. Roubou-me a mulher. Eu lhe roubarei a vida. Enrodilhou-se opaco, depois perfilou-se em artifícios, poses. Verdade, estufava o peito diante das fêmeas, as narinas um quase nada distendidas porque é assim que elas gostam, o pescoço latejava grosso. Havia finuras: grifes, blusões macios cor de mel, a fala leitosa, o carro, as camisas listradas em azul, valise cor de tabaco e aos sábados a raquete, a manhã de prímulas, de contrates. Tenho tudo. E olhava sua própria carnadura, seu rosto pétreo, e pêlos aloirados no peito nas coxas nos braços, sim, um gozo se sentir daquele jeito, todo respirante, um vivo adequado àquela manhã, àquela lá de cima, de prímulas, de contrastes. Respirou agigantado, pensou-se a língua cheia de recuerdos, o gosto da linda mulher, do orgasmo, do viscoso. Depois do vinho ela colocando as meias, os pés da mulher, as unhas de um brilho levemente prateado e… mas por quê, meu Deus, por que me lembrei agora de uma velha mulher maltrapilha, alisando rugosa as escamas do peixe, também de um brilho levemente prateado?

vai levar o peixe dona?

E eu ali nos meus sábados, só passando, a peixaria finíssima, ladrilhos, balanças, um retângulo azul e amarelo recriando o corpo de um peixe, as polpudas escamas.

tô só pensando, moço, como ele devia ter sido bonito lá no mar.

se não vai comprar vai desguiando, dona.

Parei um instante, todo de linho branco, bermuda, blusão, raquete, e ouvi a fala trêmula da velha.

a vida é crua, não moço?

Continuo. O clube mais adiante. Entro. Vou direto às quadras. E rente aos alambrados, aquela minha mulher, e o amigo sorrindo, tocando-lhe a boca, o nariz, a testa. Viram-me? Não. Em segundos volto o filme, vejo-a, os dedos abertos entre os cabelos, palavras soltas, indolentes…

ela: … tão delicado… teu amigo… parece tão sábio… jovem não? jogam sempre aos sábados?

Uma explosão de invisíveis, um som de vidros e trincas, e depois gotejante um langor, um para que a vida, sim, estou preso à mulher como o meu corpo está preso à sua própria medida, fisgando como dizem os jocosos, e de repente me sei aquele peixe desamparado, aquele corpo morto. É crua, sim, a vida, senhora. Pensar que isso existe, a morte, também mim, imaginem, para mim, eu-ele dentro daquele espaço cheio de frescor, luxuoso. Alguns homens já estavam no bar e vinham risos de lá, e o odor de colônias caras, e guizos na fala das mulheres.

vi teu parceiro… tua namorada também… não vai jogar?

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